Imagem: Divulgação | Por Simone Horvatin, jornalista (MTB 0092611/SP) especializada nos setores ambientais e de energias, associada a BDFJ Bundesverband Deutscher Fachjournalisten e.V. (Federação de Jornalistas Técnicos da Alemanha).
Abril de 2025 – A expansão da malha viária, impulsionada pela urbanização e pelo desenvolvimento econômico, representa um dos maiores desafios para a conservação da fauna no Brasil. Rodovias e ferrovias, embora essenciais para a conectividade e o progresso, atuam como verdadeiras “barreiras ecológicas”, fragmentando habitats naturais e isolando populações de animais. As consequências da proliferação de rodovias e ferrovias transcendem a visível tragédia dos atropelamentos, mergulhando em um intrincado sistema de impactos ecológicos que colocam em risco a vasta biodiversidade brasileira.
Com uma perspectiva mais técnica, a construção de infraestruturas lineares, como rodovias e ferrovias, promove a fragmentação de habitats contínuos. Essa divisão física impede ou dificulta o fluxo gênico e a dispersão de indivíduos entre subpopulações, restringindo o acesso a recursos essenciais como alimento e água, além de limitar a busca por parceiros reprodutivos e áreas de refúgio.
Em outras palavras, quando estradas ou ferrovias separam um grupo de animais, eles ficam isolados. Isso pode trazer alguns problemas:
- Cruzamento entre parentes: Animais que vivem isolados podem acabar se cruzando com seus parentes, como irmãos ou pais e filhos. Esse cruzamento, chamado de endogamia, pode gerar filhotes mais fracos e com mais chances de ter problemas de saúde.
- Menos variedade genética: Quando os animais ficam isolados, a variedade de genes dentro do grupo diminui. É como se todos fossem muito parecidos geneticamente. Essa falta de variedade dificulta a adaptação a mudanças no ambiente ou ao surgimento de novas doenças, tornando o grupo mais frágil.
- Mais vulneráveis a doenças e imprevistos: Com a falta de variedade genética e o cruzamento entre parentes, esses grupos de animais se tornam mais suscetíveis a doenças que podem se espalhar rapidamente e a eventos inesperados, como grandes secas, inundações ou incêndios.
- Risco de desaparecimento: Se esses problemas continuarem acontecendo, a população desses animais pode diminuir cada vez mais, até chegar ao ponto de desaparecer daquela região.
Além da barreira física, a própria construção dessas infraestruturas implica na destruição direta de preciosas áreas de habitat, reduzindo drasticamente o espaço disponível para a vida selvagem. Mas o impacto vai além da perda territorial. As bordas dos fragmentos de habitat criados pelas estradas sofrem o chamado “efeito de borda”, com alterações microclimáticas, maior exposição a predadores e um risco elevado de invasão por espécies exóticas, desequilibrando ainda mais os ecossistemas.
Um cenário alarmante: milhões de vidas perdidas nas estradas
Os números revelam a dimensão trágica desse problema. Estimativas apontam para cerca de 475 milhões de animais vertebrados atropelados anualmente nas rodovias brasileiras – uma média chocante de 17 vidas perdidas a cada segundo. A maioria das vítimas são pequenos vertebrados, como anfíbios, roedores, aves, cobras e lagartos, mas o impacto em espécies maiores e com baixas taxas de reprodução, como mamíferos e répteis, pode ser devastador para a sobrevivência de suas populações.
Um levantamento realizado pelo Instituto de Conservação de Animais Silvestres (ICAS) na BR-262, no Mato Grosso do Sul, entre 2017 e 2020, ilustra a gravidade da situação: quase 8 mil animais foram mortos em um trecho de apenas 500 km, uma média de cinco mortes por dia. Rodovias como a BR-116, BR-101, BR-471 e BR-153 também figuram entre as mais perigosas para a fauna, cortando áreas de inestimável valor ecológico.
Luz no fim do túnel: Soluções para uma coexistência possível
Diante desse cenário preocupante, diversas soluções e tecnologias têm sido empregadas para mitigar os impactos das estradas e ferrovias na biodiversidade. As chamadas “passagens de fauna” são infraestruturas cruciais para restabelecer a conectividade ecológica e permitir que os animais atravessem as vias com segurança. Essas passagens podem assumir diversas formas, desde pontes e viadutos verdes, cobertos por vegetação nativa para atrair os animais, até passagens subterrâneas (túneis) e passarelas arborícolas (aéreas) para espécies que se movem em diferentes estratos da floresta.
O Brasil já conta com alguns exemplos importantes, como as duas primeiras pontes verdes brasileiras, construídas em 2017 sobre o ramal ferroviário S11D da Vale, no Pará. Um caso notável é o viaduto verde na BR-101, em Silva Jardim (RJ), que desde sua inauguração em 2020 já registrou a passagem segura de mais de 4 mil animais de 28 espécies diferentes. A Argentina, por sua vez, inaugurou o primeiro ecoduto da América Latina em 2008.
Apesar desses avanços, a implementação de passagens de fauna no Brasil ainda é tímida diante da extensão da malha viária, que ultrapassa 1,7 milhão de quilômetros. Segundo o Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (DNIT), existem cerca de 1.100 dispositivos de proteção à fauna instalados em rodovias federais, mas apenas uma pequena parcela consiste em passagens subterrâneas monitoradas.
Um esforço contínuo pela conservação
A preocupação com os impactos das rodovias na biodiversidade não é recente, com os primeiros estudos sobre o tema datando da década de 1970. No entanto, a tradução desse conhecimento em ações concretas ainda enfrenta desafios. É fundamental que o planejamento de novas infraestruturas priorize a preservação de áreas de alta biodiversidade e a implementação de medidas de mitigação eficazes desde a concepção do projeto.
Além das passagens de fauna, outras medidas são importantes, como a instalação de cercas direcionadoras para guiar os animais até as passagens seguras, o uso de barreiras eletrônicas e o monitoramento tecnológico para identificar áreas críticas e avaliar a eficácia das ações implementadas. A conscientização dos motoristas, por meio de sinalizações eficazes e campanhas educativas, também desempenha um papel crucial na redução dos atropelamentos.
Tipos de infraestruturas responsáveis com a biodiversidade
Essas estruturas são desenvolvidas para atender diferentes tipos de fauna:
Viadutos verdes: são estruturas amplas, recobertas por vegetação nativa, construídas sobre rodovias e ferrovias para permitir a travessia segura da fauna. São particularmente eficazes para grandes e médios mamíferos, como veados, lobos-guará, cachorros-do-mato, raposas-do-mato, tamanduás, iraras, suçuaranas, pumas, onças, jaguatiricas, capivaras, cotias, antas e tatus, entre outros animais. A implementação dessas estruturas no Brasil, apesar de sua importância, ainda não oferece uma solução abrangente para a extensão do problema.
Onça parda utilizando passagem subterrânea
Passagens subterrâneas: são túneis ou estruturas similares construídas sob rodovias e ferrovias. São eficazes para a travessia segura de pequenos mamíferos, anfíbios e répteis, protegendo-os do tráfego. O design dessas passagens pode variar em tamanho e características para atender às necessidades específicas de diferentes espécies, facilitando a conectividade entre habitats fragmentados.
Crédito: Michael Dantas/WCS
Passarelas arborícolas ou aéreas: São estruturas que conectam as copas de árvores em áreas fragmentadas, como pontes de corda, plataformas suspensas ou mesmo imitações de galhos. Elas são essenciais para espécies arborícolas, como macacos, preguiças, esquilos, micos e diversas aves, permitindo que se desloquem com segurança entre diferentes partes da floresta em busca de alimento, abrigo e parceiros reprodutivos, evitando os perigos do solo.
Cercas guias (direcionadoras): São barreiras lineares instaladas ao longo das rodovias com o objetivo de impedir que animais menores, como tartarugas, lagartos e pequenos mamíferos, acessem a pista diretamente. Em vez disso, as cercas os direcionam para passagens de fauna seguras, como túneis subterrâneos ou outras estruturas projetadas para sua travessia, reduzindo assim o risco de atropelamentos e promovendo a conectividade entre habitats.
Túneis para peixes: são passagens construídas sob estradas, ferrovias ou outras barreiras para manter a conexão entre diferentes partes de um rio, lago ou outros corpos d’água. Essa ligação é essencial para permitir que os peixes migrem para se reproduzir, buscar alimento ou acessar diferentes habitats ao longo de seu ciclo de vida. O design desses túneis considera o fluxo da água e as necessidades das espécies que os utilizarão.
Sinalização: Consiste na instalação de placas ao longo de rodovias e ferrovias para alertar os motoristas sobre a possível presença de fauna selvagem na área. Essas placas podem apresentar pictogramas de animais específicos da região, indicar trechos com maior risco de atropelamento e, em alguns casos, sugerir limites de velocidade reduzidos. O objetivo principal é aumentar a atenção dos condutores, incentivando a direção mais cautelosa e, assim, reduzir o número de atropelamentos de animais silvestres.
Monitoramento Tecnológico: Refere-se ao uso de tecnologias como sensores infravermelhos e câmeras com visão noturna instaladas nas passagens de fauna (viadutos verdes, túneis, etc.). Esses dispositivos registram a presença e o comportamento dos animais ao utilizarem as estruturas, permitindo aos pesquisadores e gestores avaliar a eficácia das passagens, identificar as espécies que as utilizam e obter dados importantes para aprimorar futuras iniciativas de mitigação de atropelamentos e fragmentação de habitats.
Embora as concessionárias estejam implementando medidas preventivas, o elevado número de acidentes ainda é alarmante.
site Olhar Animal
site Olhar Animal –
site O pantaneiro
site FAUNA NEWS
Nathália Araújo
site Portal UFLA
Abaixo estão alguns exemplos de países que possuem legislações ou políticas relacionadas:
- União Europeia (UE)
- Diretiva Habitats (92/43/EEC): Obriga os Estados-membros a protegerem espécies e habitats prioritários, incentivando a construção de infraestrutura como passagens para fauna.
- Estratégia de Infraestrutura Verde da UE: Promove soluções baseadas na natureza, incluindo corredores ecológicos e passagens para animais, como parte do Pacto Ecológico Europeu.
- Alemanha
- A Alemanha lidera na construção de ‘Grünbrücken‘ (denominadas também como grüne brücke, wildbrücke) com mais de 107 pontes verdes. Embora não exista uma lei nacional específica obrigando as concessionárias, os projetos são frequentemente exigidos como parte dos estudos de impacto ambiental (EIA) e licenciamento.
- Polônia
- Em projetos financiados pela UE, como na rodovia A-18, a construção de 11 viadutos verdes foi aprovada para proteger espécies ameaçadas. Essas medidas são vinculadas às obrigações da Diretiva Habitats.
- Croácia
- A legislação exige que novos projetos rodoviários incluam passagens para fauna, com cinco novos viadutos verdes construídos na rodovia Karlovac-Split para proteger grandes predadores como ursos e lobos.
- Brasil
- Embora o Brasil não tenha uma legislação específica sobre pontes e viadutos verdes, o Código Florestal (Lei 12.651/2012) protege áreas de preservação permanente (APPs), o que pode incluir passagens para fauna em rodovias próximas a ecossistemas sensíveis. Exemplos incluem a BR-319, que possui passagens subterrâneas e aéreas para animais.
- Estados Unidos e Canadá: Projetos icônicos, como os viadutos no Parque Nacional de Banff. No entanto, estudos indicam que ursos levaram cerca de 10 anos para começar a usar ecodutos.
A mitigação dos impactos ambientais de rodovias e ferrovias exige um esforço conjunto de governos, empresas, pesquisadores e da sociedade em geral.
A implementação de legislação ambiental específica e rigorosa, o planejamento minucioso das infraestruturas e o monitoramento contínuo da fauna e flora nas áreas de influência das vias são passos essenciais para proteger a rica biodiversidade brasileira e garantir uma coexistência mais harmoniosa entre o desenvolvimento e a natureza. O futuro da nossa fauna depende da nossa capacidade de cicatrizar essa “cicatriz asfáltica” que fragmenta a vida selvagem do Brasil.
Sobre a autora
Simone Horvatin é jornalista brasileira (MTB 0092611/SP) e associada a BDFJ – Bundesverband Deutscher Fachjournalisten e.V. (Federação de Jornalistas Técnicos da Alemanha). Em 2016, criou a plataforma Ambiental Mercantil para fortalecer a troca de informações e conhecimentos sobre o meio ambiente e a sustentabilidade entre Alemanha e Brasil. Perfil no LinkedIn.
Referências
- O que rodovias estão fazendo para evitar acidentes com animais
- Ações sustentáveis do governo de São Paulo para reduzir impactos ambientais nas rodovias
- Soluções para rodovias mais sustentáveis
- Sustentabilidade em concessões de rodovias
- Soluções para reduzir os impactos na rodovia e proteger a fauna na BR-319
- Construção de pontes verdes na Croácia e Polônia para proteger ursos, lobos e outros animais selvagens
- Ferramentas e ações de monitoramento reduzem mortes de animais em rodovias
- Proteger o tamanduá-bandeira, tornando as estradas mais seguras para todos
- Proposta cria corredor ecológico para a proteção da onça-pintada
- Rodovias do Circuito das Águas e Rota Mogiana contarão com passagens para proteger animais silvestres de acidentes
- Passagens de fauna: Proteção de animais nas estradas