
Pelo Prof. Dr. Fabio Rubens Soares, Pesquisador do GBio (Grupo de Pesquisa em Bioenergia) no IEE-Instituto de Energia e Ambiente da USP e Especialista da ABREN/WtERT Brasil (Associação Brasileira de Recuperação Energética). Foto: Pixabay
A digestão anaeróbia (DA) pode ser definida como a conversão de material orgânico em dióxido de carbono, metano e o digerido através de bactérias, em um ambiente pobre em oxigênio.
Este processo é o mesmo que ocorre num aterro sanitário, porém, é acelerado através de equipamentos projetados para otimizar as condições da reação de forma a aumentar sua velocidade. O gás obtido durante a digestão anaeróbia, chamado de biogás, inclui além do metano e do dióxido de carbono, alguns gases inertes e compostos sulfurosos. A digestão anaeróbia é consequência de uma série de interações metabólicas com a atuação de diversos grupos de microrganismos. A produção de metano ocorre em um espectro amplo de temperaturas, mas aumenta significativamente em duas faixas, ditas mesofílica – entre 25-40°C, e termofílica – entre 50- 65°C. A Figura 1 mostra um esquema simplificado de um processo de digestão anaeróbia.

A maioria dos sistemas de digestão anaeróbia necessita de uma fase de pré-tratamento da carga de entrada na qual são separados os resíduos não digeríveis. A separação garante a remoção de materiais recicláveis, como vidros, metais e resíduos indesejáveis.
Dentro do digestor a carga é diluída para atingir o teor de sólidos desejado e aí permanece durante o tempo de retenção designado (em torno de 20 dias). Para a diluição, uma ampla variedade de fontes de água pode ser utilizada, como água limpa, água de esgoto ou líquido re-circulante do efluente de digestor.
Frequentemente há a necessidade de um trocador de calor a fim de manter a temperatura no vaso de digestão. As impurezas do biogás são retiradas para que o produto esteja de acordo com a necessidade de sua aplicação. No caso de tratamento residual, o efluente do digestor é desidratado e o líquido é reciclado para ser usado na diluição da carga de alimentação. Os biossólidos são aerobiamente tratados para a obtenção do produto composto, estabilizados para serem depositados em aterros ou usados como combustível para incineração.
A quantidade de biogás produzida depende, entre outros fatores, da tecnologia empregada na digestão.
A usina de Tilburg, na Holanda, por exemplo, pode alcançar 106 m3/t de resíduos (75% de restos de alimentos e de jardim e 25% de papel não reutilizável), com um teor de 56% de metano. Outro exemplo, um fabricante de biodigestores americano sugere, como média, o valor de 120 m3 de biogás por tonelada de material orgânico. Considerando-se essas referências e a proporção de matéria orgânica na quantidade de resíduos gerados, pode-se afirmar que entre 60 a 75 m³ de biogás são produzidos por tonelada de resíduo em um processo de digestão anaeróbia. A composição típica do biogás assim produzido é apresentada na Tabela 1.

Da mesma forma que na recuperação de gás do aterro, o biogás pode ser consumido diretamente, situação em que apresenta poder calorífico entre 19 e 25 MJ/Nm3, ou tratado para separação e aproveitamento do metano, cujo poder calorífico é semelhante ao do gás natural. Em termos elétricos, considerando a eficiência elétrica do motor de cogeração de 35% na conversão de energia térmica para energia elétrica, podem ser obtidos entre 50 e 150 kWh por tonelada de resíduo, dependendo do conteúdo energético do material orgânico.
O processo de decomposição biológica natural que ocorre na biodigestão anaeróbia tem sido amplamente utilizado em vários países. Desde o século passado este tipo de tratamento tem sido utilizado para o lodo de esgoto e, mais recentemente, muitas experiências têm sido feitas com a digestão anaeróbia de resíduos rurais e esgotos industriais.
A digestão anaeróbia, como processo industrial, surgiu na Índia em 1859, e até 1920, era muito utilizada em lagoas anaeróbias. Com o avanço do conhecimento do processo, foram desenvolvidos reatores com condições adequadas para atingir melhor eficiência e aceleração do processo. Os estudos de Buswell, entre outros sobre microbiologia, permitiram identificar as bactérias anaeróbias apropriadas e as condições específicas para promover a produção de biogás.
Nos últimos anos, o estudo da biodigestão anaeróbia de RSU foi intensificado, fazendo com que grande número de plantas piloto e em escala comercial fossem construídas, principalmente na Europa devido a dois fatores principais: os altos custos da energia e as restrições ambientais, especialmente no que diz respeito ao controle e proibição de disposição de matéria orgânica em aterros sanitários, bem como às dificuldades para a implantação de novos aterros ou à expansão dos existentes.
O processo operacional da biodigestão anaeróbia é composto de quatro etapas:
1 – pré-tratamento;
2- digestão dos resíduos;
3 – recuperação do biogás; e
4 – tratamento dos rejeitos.
Em geral, é necessário pré-tratamento dos resíduos para obter uma biomassa homogênea. Este pré-tratamento envolve a separação ou triagem dos materiais não biodegradáveis e trituração.
O projeto de instalação de um sistema de digestão anaeróbia baseia-se nas características operacionais do processo, na quantidade de água para diluição, na taxa de alimentação e no tempo de retenção, buscando-se sempre minimizar as perdas de biomassa.
No biodigestor, a massa é misturada constantemente para alcançar o conteúdo de sólidos desejado, e permanece retida no interior do reator por tempo determinado. Para a diluição utiliza-se água ou lodo de esgoto (biomassa biológica) ou a própria recirculação do líquido efluente do reator. No processo termofílico, normalmente se requer um trocador de calor para manter a temperatura de reação entre 55ºC e 60ºC. O biogás obtido é então purificado e armazenado para utilização. Caso o efluente sólido do biodigestor apresente umidade muito elevada, utiliza-se um processo de deságue para o seu descarte e o efluente líquido pode ser reutilizado ou enviado para tratamento. A biomassa residual do processo deve receber tratamento aeróbio para obtenção de um composto de qualidade que pode ser utilizado como fertilizante.
Ainda os seguintes parâmetros devem ser considerados para o controle no processo anaeróbio:
- Composição dos resíduos e concentração de sólidos voláteis | Os sólidos voláteis são o resultado da subtração dos sólidos totais e das cinzas obtidas após combustão completa dos resíduos. Os sólidos voláteis são subdivididos em sólidos voláteis biodegradáveis e sólidos voláteis refratários. O conhecimento da fração de biodegradáveis ajuda na melhor definição da biodegradabilidade dos resíduos, da geração de biogás, da taxa de aplicação orgânica e da relação entre carbono e nitrogênio. A lignina é um material complexo de difícil degradação por bactérias anaeróbias e constitui basicamente a fração dos refratários nos resíduos orgânicos municipais.
- Sólidos totais e taxa de aplicação orgânica ou taxa de alimentação | O conteúdo máximo de sólidos totais na carga de materiais para o biodigestor pode ser de até 40%. A taxa de aplicação orgânica é a medida da capacidade de conversão biológica de um processo de biodigestão anaeróbia e sua unidade de medida é usualmente kgsv/m³.d. Se alimentarmos um sistema acima da taxa de aplicação orgânica sustentável poderá ocorrer a perda de eficiência da reação e, consequentemente, baixa produção de biogás devido ao acumulo de substâncias inibidoras da reação como ácidos graxos no interior do digestor.
Em sistemas contínuos, a taxa de aplicação orgânica é um parâmetro de controle muito importante. Processos de biodigestão anaeróbia foram avaliados por Gallert et al. (2003) onde: foram observadas para resíduos verdes coletados seletivamente taxas acima de 8,5 DQO/m³.d. No entanto, para taxas mais elevadas acima de 15 kg DQO/m³.d, observou-se acidificação do reator:
- o pH da mistura deve ser mantido entre 6,5 e 8,5;
- a velocidade de elevação da temperatura da biodigestão não deve ser maior que 1 ºC/dia, pois incrementos maiores do que essa taxa podem causar choque térmico na reação;
- a relação C/N representa a relação entre as quantidades de carbono e de nitrogênio presentes na matéria orgânica. O valor ótimo para a relação C/N deve estar entre 20 e 30. Valores mais altos indicam rápido consumo de nitrogênio pelas bactérias metanogênicas, o que resulta em perda de eficiência do processo e baixa produção de biogás;
- o tempo de retenção ou de detenção hidráulico (TDH) é o tempo mínimo de retenção que normalmente varia entre 15 a 20 dias. Dependendo da taxa de aplicação orgânica dos tipos de resíduos carregados no biodigestor, das proporções em sua mistura, da diluição do material no biodigestor e do tipo do biodigestor, a retenção pode ser estendida para o processo alcançar o máximo de eficiência;
- a concentração de amônia resultante da degradação das proteínas, não deve ser superior a 3.000 mg/l na forma iônica e a 150 mg/l na forma de NH3 livre;
- a mistura é essencial para se obter uma condição homogênea em todo o reator com relação ao pH, temperatura interna de reação e concentração de ácidos voláteis. O tipo de reator depende da homogeneidade requerida e do teor de sólidos contidos na massa do reator.
Na Figura 2 pode ser visto um diagrama esquemático da transformação de resíduos orgânicos em biogás.

A recuperação energética de resíduos orgânicos é uma temática extremamente importante para o país para o desenvolvimento de uma matriz energética mais eficiente e certamente contribui para a minimização do descarte desses resíduos assim como seu aproveitamento para produção de energia.
O Brasil encontra-se hoje numa posição um pouco mais avançada na recuperação energética de resíduos animais onde o setor agropecuário esta mais avançado.
No caso de aproveitamento energético de resíduos sólidos urbanos estamos ainda numa fase embrionária, no entanto o desenvolvimento de responsabilidades ambientais mais restritivas colaborarão para a aplicação de tecnologias de biodigestão anaeróbia no país.
Certamente a contribuição tecnológica da produção de biogás colabora para a mitigação das emissões de gases de efeito estufa que contribuem para o indesejado aquecimento global e contribui para a ampliação da utilização de energias renováveis no Brasil.
Sobre o Autor
Prof. Dr. Fabio Rubens Soares
Graduado em Engenharia Química pela Escola Superior de Química Oswaldo Cruz (1980), Administração de Negócios pela Mauá, Pós Graduado em Gestão Ambiental pela FAAP, Mestrado em Gestão Ambiental pelo Senac SP e Doutor na área de Energia pela Universidade Federal do ABC. Fez Pós Doutorado no Instituto de Energia e Ambiente (IEE) da Universidade de São Paulo (USP). Foi Coordenador do curso de Engenharia de Energia e Tecnologia em Logística do Centro Universitário Senac – São Paulo e Professor da Fundação Armando Álvares Penteado.
Email: frubenssoares@uol.com.br
Link para Lattes : https://lattes.cnpq.br/8114446975444780
Consultor de Empresas e Diretor da Enviroservices .
Portfolio acadêmico e profissional
Foi Professor mensalista e Pesquisador do Centro Universitário SENAC e Coordenador do Comitê de Implantação do curso de Pós Graduação em Energia. Atuou por mais de 30 anos na Indústria Química e Petroquímica com vasta experiência internacional. MBA pela Harvard Business School. Possui larga experiência na área de Ciências Ambientais, Energia, Produção e Operações Industriais, atuando principalmente nos seguintes temas: administração, manufatura, energia, produção, operações, manutenção, logística, qualidade, meio ambiente, segurança e saúde, gestão de pessoas, liderança, conscientização ambiental, educação ambiental e sustentabilidade.
Atualmente é Pesquisador do GBio (Grupo de Pesquisa em Bioenergia) no IEE-Instituto de Energia e Ambiente da USP e Especialista da ABREN/WtERT Brasil (Associação Brasileira de Recuperação Energética). Membro de Governança Corporativa e Conselho Fiscal de uma S.A. em São Paulo.
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Crédito:
Ambiental Mercantil | Opinião de Especialista